"Ivan,
Há um exagero de maio em São Paulo. Fico brincando de descobrir o que sobrou da antiga Avenida Brigadeiro Luis Antônio, que desde que me lembro por gente subi e desci, rumo a endereços vários. Percorro, com antigo encantamento, as avenidas debruadas de casas rodeadas de verde, gramados, jardins, chorões despencados. Tão São Paulo! A luz coada, a finura do ar, o frio bom e estimulante.
Num mundo que mudou tanto, tão outro eu mesmo, quase fico reconhecido de reencontrar os antigos marcos. A rua em que eu ía à piscina, todas as manhãs, a grande igreja quieta, um casarão que achava bonito e que amarelou, envelheceu, perdeu a antiga solenidade. O cinema que vi inaugurar, grã-fino e suntuoso, é hoje um cinema de bairro, com um jeito pobre e suburbano. Recortados contra o céu, na surpresa de uma esquina, os minaretes finos da casa do turco e em frente o bangalozinho de tijolos vermelhos que me abrigou na adolescencia. Tenho saudades? Não tenho.
Sou turista do mundo, na cidade em que nasci, numa tarde sem programa, nem pedaço de rua que já quase não reconheço. Gosto de revirar dentro do peito as emoções que me voltam desses antigos caminhos, com dores antigas e antigas alegrias, que já perderam umas e outras a sua força.
Mas me assusto, de repente, com a ruazinha estreita que, no meu tempo, não chegava até aqui. Entro por ela, espantado de que as casinhas geminadas, com o jardim anão, na frente, continuem tão iguais. A luz, o céu, o frio da tarde, as pedras desiguais da rua, a torneira de regar jardim, o gramado, a gradezinha, o terraço em que só cabia uma poltrona de vime e um antigo pé de samambaia, minhas duas janelas. Há mais de vinte anos virei aquela esquina para nunca mais.
Paro diante de um senhor que brinca com o neto, na minha porta, no meu terraço. Rua, jardim, terraço, são tão pequenos que não preciso dar explicações. Não, não estou procurando ninguém, não vendo produtos, não vim receber nenhuma prestação.
Desculpe, era só saudade. Saí daqui com um menino igual a esse, os pés menores do que esses paralelepípedos em que um dia, deslumbrado, o vi tropeçar os primeiros passos. É, tomava banho de mangueira, equilibrado nessa mesma torneira - como está polida! -, e era posto a secar sobre a grama.
Era uma beleza de menino! Ficou homem e me roubou um pouco, crescendo, daquela alegria de ter um menino, que é mais um brinquedo do que gente. Ainda não me acostumei com a idéia de que uma criança encaracolada que a gente borrifa de água e deixa secar na grama, antes da sopinha da tarde, de repente cresce por conta própria, faz a barba, bota a chave da casa no bolso, fuma, trabalha, sofre. Parece meio esquisito. Do homem e do menino a gente gosta igual, só que do menino resolve mais problemas. Virei aquela esquina e desemboquei 25 anos para trás. Não contava chegar tão longe.
Mario Sergio"
(Eles foram para Petrópolis - correspondências entre Ivan Lessa e Mario Sergio Conti).
Há um exagero de maio em São Paulo. Fico brincando de descobrir o que sobrou da antiga Avenida Brigadeiro Luis Antônio, que desde que me lembro por gente subi e desci, rumo a endereços vários. Percorro, com antigo encantamento, as avenidas debruadas de casas rodeadas de verde, gramados, jardins, chorões despencados. Tão São Paulo! A luz coada, a finura do ar, o frio bom e estimulante.
Num mundo que mudou tanto, tão outro eu mesmo, quase fico reconhecido de reencontrar os antigos marcos. A rua em que eu ía à piscina, todas as manhãs, a grande igreja quieta, um casarão que achava bonito e que amarelou, envelheceu, perdeu a antiga solenidade. O cinema que vi inaugurar, grã-fino e suntuoso, é hoje um cinema de bairro, com um jeito pobre e suburbano. Recortados contra o céu, na surpresa de uma esquina, os minaretes finos da casa do turco e em frente o bangalozinho de tijolos vermelhos que me abrigou na adolescencia. Tenho saudades? Não tenho.
Sou turista do mundo, na cidade em que nasci, numa tarde sem programa, nem pedaço de rua que já quase não reconheço. Gosto de revirar dentro do peito as emoções que me voltam desses antigos caminhos, com dores antigas e antigas alegrias, que já perderam umas e outras a sua força.
Mas me assusto, de repente, com a ruazinha estreita que, no meu tempo, não chegava até aqui. Entro por ela, espantado de que as casinhas geminadas, com o jardim anão, na frente, continuem tão iguais. A luz, o céu, o frio da tarde, as pedras desiguais da rua, a torneira de regar jardim, o gramado, a gradezinha, o terraço em que só cabia uma poltrona de vime e um antigo pé de samambaia, minhas duas janelas. Há mais de vinte anos virei aquela esquina para nunca mais.
Paro diante de um senhor que brinca com o neto, na minha porta, no meu terraço. Rua, jardim, terraço, são tão pequenos que não preciso dar explicações. Não, não estou procurando ninguém, não vendo produtos, não vim receber nenhuma prestação.
Desculpe, era só saudade. Saí daqui com um menino igual a esse, os pés menores do que esses paralelepípedos em que um dia, deslumbrado, o vi tropeçar os primeiros passos. É, tomava banho de mangueira, equilibrado nessa mesma torneira - como está polida! -, e era posto a secar sobre a grama.
Era uma beleza de menino! Ficou homem e me roubou um pouco, crescendo, daquela alegria de ter um menino, que é mais um brinquedo do que gente. Ainda não me acostumei com a idéia de que uma criança encaracolada que a gente borrifa de água e deixa secar na grama, antes da sopinha da tarde, de repente cresce por conta própria, faz a barba, bota a chave da casa no bolso, fuma, trabalha, sofre. Parece meio esquisito. Do homem e do menino a gente gosta igual, só que do menino resolve mais problemas. Virei aquela esquina e desemboquei 25 anos para trás. Não contava chegar tão longe.
Mario Sergio"
(Eles foram para Petrópolis - correspondências entre Ivan Lessa e Mario Sergio Conti).
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