segunda-feira, 17 de maio de 2010
quinta-feira, 6 de maio de 2010
O STF de costas para a humanidade
A consagração, pelo STF, da impunidade dos agentes do Estado bandido faz ainda mais urgente a criação de uma comissão da verdade
"ACHO QUE a tortura, em certos casos, torna-se necessária para obter confissões" (frase do general Ernesto Geisel, em depoimento a Maria Celina D'Araújo e Celso Castro). Assistir à sessão em que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a revisão da Lei da Anistia foi entrar em viagem no tempo que levasse ao ano de 1979 e ali ficássemos imobilizados. Os ministros estavam angustiados, quase às lágrimas, diante dos supostos riscos de reverem lei elaborada por regime de exceção e submetida por ditador militar goela adentro do Congresso Nacional. Nos votos, preponderou exacerbado anacronismo, o tempo presente, ausente. Ali, não foi levada em conta a evolução da norma internacional, da prática acumulada das democracias e dos Judiciários no mundo em face de crimes cometidos por regimes de exceção e a exigibilidade de sua punição. Prevaleceu a contrafação histórica da lei nº 6.683/79, como resultado de um grande "acordo político", apesar de a conjuntura de 1979 ali descrita não bater com o que aconteceu. A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição parlamentar haviam lutado. Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21 , um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo. A lei celebrada nos debates do STF como saldo de "negociação" foi aprovada com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB. A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no "acordo nacional" que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam. Foram abundantes nos votos as metáforas de trânsito, como a "dupla via", a "ponte" de perdão mútuo e reconciliação que a Lei da Anistia alegadamente teria significado. Com o argumento prosaico de que a lei nº 6.683 não foi uma autoanistia porque "bilateral", pois as vítimas dos criminosos do Estado foram também beneficiadas . Como o ditador e o regime de exceção foram tão bonzinhos, contemplando, além dos torturadores, o "outro lado" - as vítimas-, a Lei de Anistia não se incluiria nos casos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condena como autoanistia. Foi inebriante o coro, com acentos gongóricos, de condenações à tortura. Pena que o clamor de justiça pela sociedade e pelos familiares dos desaparecidos, sequestrados, estuprados, torturados e assassinados pelos agentes da ditadura não tenha sido levado a sério. Por zelo formalista, a maioria dos ministros jogou pá de cal no exame, pelo Judiciário, desses crimes. A execração da tortura soou farisaica, pois consagrou a impunidade dos torturadores e negou direitos e justiça às vítimas. Houve, igualmente, uma exaltação do direito à verdade, à completa reconstituição da história da repressão. Vai ver, os ministros acreditam que os torturadores, agora impunes, irão revelar tudo sobre seus crimes. Revelem ou não, a consagração, pelo STF, da impunidade dos agentes do Estado bandido faz ainda mais candente e urgente o estabelecimento de uma comissão da verdade, para que a sociedade, tendo-lhe sido negado o acesso à justiça, possa ao menos conhecer a verdade. A recusa da revisão da Lei de Anistia, ressalvados dois votos contrários, consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos. Diante desse constrangimento, resta provarmos, governo federal, Legislativo e sociedade, que temos competência para fazer prevalecer a verdade, mesmo sem a justiça que o Supremo Tribunal Federal negou.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA). Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Publicado na Folha de S.Paulo - TENDÊNCIAS/DEBATES - São Paulo, quarta-feira, 05 de maio de 2010
"ACHO QUE a tortura, em certos casos, torna-se necessária para obter confissões" (frase do general Ernesto Geisel, em depoimento a Maria Celina D'Araújo e Celso Castro). Assistir à sessão em que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a revisão da Lei da Anistia foi entrar em viagem no tempo que levasse ao ano de 1979 e ali ficássemos imobilizados. Os ministros estavam angustiados, quase às lágrimas, diante dos supostos riscos de reverem lei elaborada por regime de exceção e submetida por ditador militar goela adentro do Congresso Nacional. Nos votos, preponderou exacerbado anacronismo, o tempo presente, ausente. Ali, não foi levada em conta a evolução da norma internacional, da prática acumulada das democracias e dos Judiciários no mundo em face de crimes cometidos por regimes de exceção e a exigibilidade de sua punição. Prevaleceu a contrafação histórica da lei nº 6.683/79, como resultado de um grande "acordo político", apesar de a conjuntura de 1979 ali descrita não bater com o que aconteceu. A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição parlamentar haviam lutado. Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21 , um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo. A lei celebrada nos debates do STF como saldo de "negociação" foi aprovada com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB. A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no "acordo nacional" que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam. Foram abundantes nos votos as metáforas de trânsito, como a "dupla via", a "ponte" de perdão mútuo e reconciliação que a Lei da Anistia alegadamente teria significado. Com o argumento prosaico de que a lei nº 6.683 não foi uma autoanistia porque "bilateral", pois as vítimas dos criminosos do Estado foram também beneficiadas . Como o ditador e o regime de exceção foram tão bonzinhos, contemplando, além dos torturadores, o "outro lado" - as vítimas-, a Lei de Anistia não se incluiria nos casos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condena como autoanistia. Foi inebriante o coro, com acentos gongóricos, de condenações à tortura. Pena que o clamor de justiça pela sociedade e pelos familiares dos desaparecidos, sequestrados, estuprados, torturados e assassinados pelos agentes da ditadura não tenha sido levado a sério. Por zelo formalista, a maioria dos ministros jogou pá de cal no exame, pelo Judiciário, desses crimes. A execração da tortura soou farisaica, pois consagrou a impunidade dos torturadores e negou direitos e justiça às vítimas. Houve, igualmente, uma exaltação do direito à verdade, à completa reconstituição da história da repressão. Vai ver, os ministros acreditam que os torturadores, agora impunes, irão revelar tudo sobre seus crimes. Revelem ou não, a consagração, pelo STF, da impunidade dos agentes do Estado bandido faz ainda mais candente e urgente o estabelecimento de uma comissão da verdade, para que a sociedade, tendo-lhe sido negado o acesso à justiça, possa ao menos conhecer a verdade. A recusa da revisão da Lei de Anistia, ressalvados dois votos contrários, consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos. Diante desse constrangimento, resta provarmos, governo federal, Legislativo e sociedade, que temos competência para fazer prevalecer a verdade, mesmo sem a justiça que o Supremo Tribunal Federal negou.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA). Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Publicado na Folha de S.Paulo - TENDÊNCIAS/DEBATES - São Paulo, quarta-feira, 05 de maio de 2010
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